terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

TRECHO MACHADO DE ASSIS, 1969

(...) publicou-se há dias o recenseamento do Império, do qual se colige que 70% da nossa
população não sabem ler.
Gosto dos algarismos, porque não são de meias medidas nem de metáforas. Eles dizem as
coisas pelo seu nome, às vezes um nome feio, mas não havendo outro, não o escolhem. São
sinceros, francos, ingênuos. As letras fizeram-se para frases; o algarismo não tem frases, nem
retórica.
Assim, por exemplo, um homem, o leitor ou eu, querendo falar do nosso país, dirá:
– Quando uma Constituição livre pôs nas mãos de um povo o seu destino, força é que
este povo caminhe para o futuro com as bandeiras do progresso desfraldadas. A soberania
nacional reside nas Câmaras; as Câmaras são a representação nacional. A opinião pública deste
país é o magistrado último, o supremo tribunal dos homens e das coisas. Peço à nação que
decida entre mim e o Sr. Fidélis Teles de Meireles Queles; ela possui nas mãos o direito a todos
superior a todos os direitos.
A isto responderá o algarismo com a maior simplicidade:
– A nação não sabe ler. Há só 30% dos indivíduos residentes neste país que podem ler;
desses uns 9% não lêem letra de mão. 70% jazem em profunda ignorância. Não saber ler é
ignorar o Sr. Meireles Queles; é não saber o que ele vale, o que ele pensa, o que ele quer; nem
se realmente pode querer ou pensar. 70% dos cidadãos votam do mesmo modo que respiram:
sem saber porque nem o quê. Votam como vão à festa da Penha, – por divertimento. A
Constituição é para eles uma coisa inteiramente desconhecida. Estão prontos para tudo: uma
revolução ou um golpe de Estado.
Replico eu:
– Mas, Sr. Algarismo, creio que as instituições...
– As instituições existem, mas por e para 30% dos cidadãos. Proponho uma reforma no
estilo político. Não se deve dizer: “consultar a nação, representantes da nação, os poderes da
nação”; mas – “consultar os 30%, representantes dos 30%, poderes dos 30%”. A opinião pública
é uma metáfora sem base; há só a opinião dos 30%. Um deputado que disser na Câmara:
“Sr. Presidente, falo deste modo porque os 30% nos ouvem...” dirá uma coisa extremamente sensata.
E eu não sei que se possa dizer ao algarismo, se ele falar desse modo, porque nós não
temos base segura para os nossos discursos, e ele tem o recenseamento.

PERGUNTO: PQ NADA MUDA?